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Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

observatório

M. Martins, 28.12.20


 Mia Couto
 
Não se engane, senhor padre: o senhor também trabalha nos subterrâneos. Aliás, não há neste mundo trabalho que não seja de mineiro, seja ele executado por cima ou por baixo da terra
Padre Bartolomeu, agradeço-lhe ter aberto a porta da sua casa para receber a minha confissão.

Não sabia que os padres fazem horas extra e, ainda por cima, na sua própria residência.

Mas eu pequei, padre, e quero ser perdoado. Desculpe a hora, mas para nós, os mineiros, toda a hora é extraordinária.

No fundo da mina, é sempre noite. A mesma noite. Por baixo da areia, o tempo enrosca- -se como fazem as sementes.

Lá onde trabalho, não chegam a luz nem o ar, mas chegam notícias. Sabe como é: as novidades infiltram- -se por onde nada mais passa. Foi assim que ouvi falar da chegada dos europeus. Uma delegação de europeus tinha desembarcado na nossa aldeia, com viaturas e máquinas de todo o tipo. Assim que escapei do meu turno de trabalho, fui à aldeia e disseram-me que esses estrangeiros se preparavam para erguer uma grande construção. “Construir” é um verbo por que tenho muito respeito, talvez porque, no trabalho das minas, apenas nos ocupamos de serviços opostos: escavar, rasgar, explodir.

O meu avô – que morreu dentro da mina – dizia que, após tanto cavar, se encontra a Lua dentro da Terra. No caso do meu velho parente, foi o inverso: trouxeram o seu corpo para a superfície e havia uma espécie de luar que emergia de dentro dele. Estava deitado de bruços e era visível a marreca nas costas.

Sofro da mesma deformação. És um mineiro congénito, consolou-me o meu avô. Ser corcunda, disse ele, ajuda a circular pelas galerias. Mas eu não quero acabar os meus dias escavando túneis. Foi por isso que me ofereci para trabalhar na nova construção. Seria com certeza um hospital ou uma escola que tanto nos falta. Deus está atento, padre.

Os europeus montaram uma banca na praça e convocaram todos os homens que queriam concorrer àquele trabalho. O meu primo Geraldo estava na fila dos candidatos e explicou-me: os brancos são cientistas e vão construir uma torre.

– Uma torre? – perguntei, surpreso.

– Um observatório – acrescentou o meu primo.

– Vamos ser observados? – voltei a perguntar.

– É para observar aves – declarou Geraldo e fez com os dedos longos um gesto imitando asas. Reparei que as unhas dele estavam limpas e cuidadas. E tive medo de que ele levantasse voo.

Quando chegou a minha vez, o cientista perguntou pela minha profissão. Menti. Não podia dizer aos brancos que era mineiro. O que poderia eu saber de pássaros se vivia com as toupeiras? Divaguei sobre as aves da nossa terra. E inventei nomes que não existiam em nenhuma língua: xinguitira, mururukweru, mbalalaia, xitutuíne, ntinituwe. E quando já nomeava o quinquagésimo pássaro, o europeu ergueu o braço.

– Nenhuma dessas aves indígenas nos interessa – disse o estrangeiro.

Fiquei desiludido com o desinteresse pela nossa fauna tão cheia de cor, tão cheia de cantos e, sobretudo, tão cheia de carne.

– Só nos interessam aves de migração – declarou o cientista.

Apeteceu-me dizer que aqui, na nossa aldeia, ninguém migra senão para dentro da terra. Limitei-me a esclarecer que o que ali mais abundava eram aves que vinham de longe para nos visitar.

Risquei as nuvens com o meu dedo indicador e afirmei: “Os pássaros internacionais gostam muito deste nosso céu.”

– Não há aves internacionais – corrigiu o cientista. E repetiu que o que lhe interessava eram as aves europeias que atravessam o Mediterrâneo.

Aquilo, sinceramente, entristeceu-me.

Porquê aquela discriminação? Os pássaros não se distinguem pela origem. Uns são bons de comer. Outros têm ossos, penas e pouco mais. Mas não deixei que os meus sentimentos viessem à superfície. Sou um mineiro, há muito que me enterro dentro de mim. Com convicção, anunciei que as aves europeias eram as nossas preferidas.

Não lhes disse que as minas, com seus ruidosos fumos, há muito tinham afugentado toda a passarada da nossa região. Como dizia o meu avô, são os pássaros que fabricam o céu. E o nosso céu deixara de existir.

O cientista estendeu sobre a mesa um cartaz com imagens de pássaros. Eram fotografias a cores, e os bichos estavam todos bonitos e sorridentes. A mim nunca ninguém me tinha fotografado com toda aquela vaidade.

O estrangeiro pediu que, daqueles bichos lustrosos, eu identificasse os que por ali apareciam. Todos, disse eu. O cientista sorriu e fixou o olhar na capulana que eu trazia sobre os ombros para disfarçar o meu defeito físico. Perguntou-me se eu era um chefe tradicional. E explicou que “a luta pela biodiversidade se deve apoiar nas chefias tradicionais”. Não entendi o que ele dizia, mas declarei-me logo um chefe muitíssimo tradicional.

O europeu perguntou-me se, como líder comunitário, eu dirigia cerimónias religiosas africanas. Mais uma vez menti: que a minha especialidade era propiciar a chegada de aves de migração, fossem elas magras ou carnudas. Era uma espécie de serviço de encomendas junto das nossas divindades. Talvez este tenha sido o meu maior pecado, senhor padre, porque não disse aos europeus que venerávamos o mesmo Deus dos católicos, esse Deus que escolheu a Humanidade para erguer torres e fiscalizar as aves que andam vagabundeando pelo planeta.

Hoje sou uma sentinela que vigia os céus, sentado no topo da torre. Essa função dá-me um grande orgulho.

Há, porém, um segredo que apenas a si, senhor padre, posso confessar. De tanto ter trabalhado nas minas não sei enxergar senão no escuro. Há uma poeira fina que me cobre por dentro, antecipando a cova do meu enterro.

Essa espécie de cegueira impede-me de executar a missão que me foi incumbida. O que faço é inventar pássaros. Assinalo a sua falsa presença no formulário que os cientistas todos os dias colocam nestas minhas mãos que nunca mais deixarão de estar sujas de carvão.

A minha mulher avisa-me de que não tarda que me expulsem do emprego. Não me importo, porque um dia destes vi chegar uma criatura que não podia ser senão um anjo. Pousou na torre do observatório, estava encharcado e cheio de frio. Pediu-me que o abraçasse. Tive medo. Não se abraça um anjo migratório sem cerimónia e sem os necessários cuidados higiénicos. Mas ele insistiu, os olhos cansados e os braços tremendo de frio. Estreitei o meu corpo contra o dele. Aos poucos, fui-me sentindo aquecido e o meu olhar ficou, como posso dizer, mais limpo. Esse anjo, agora, visita-me todos os dias.

Com o devido respeito, posso dizer que somos amigos.

Não preciso de rezar para que ele compareça. Saudamo-nos com um abraço e falamos de terras inundadas de gente e de luz, onde os homens não morrem com o peito cheio de terra. Esse observatório é agora a minha igreja. Talvez o padre venha a rezar missa nessa torre. O senhor poderá não ver nunca nenhum pássaro, mas vai ser visitado por eles. Os cientistas não sabem, mas este observatório foi construído por aves. Elas não querem deixar de nos visitar, mesmo que voem apenas dentro de nós. Desse modo, voltamos também nós, humanos, a ver-nos a nós mesmos.

Não se engane, senhor padre: o senhor também trabalha nos subterrâneos. Aliás, não há neste mundo trabalho que não seja de mineiro, seja ele executado por cima ou por baixo da terra. Arrancamos pedaços do mundo e, nesse vazio escuro, vamos deixando de nos ver uns aos outros. Só sabemos que estamos juntos quando um desastre faz desabar o teto da mina.

O ESPÍRITO DOS NATAIS FUTUROS

M. Martins, 18.12.20

O desabafo de hoje é fruto da época,roubei o texto porque o acho muito atual ,,

Há um traço comum que os portugueses têm dificuldade em ultrapassar, fruto de séculos de História e quatro décadas em ditadura. Somos adeptos de um Estado paternalista, que nos indica o caminho, conduz e orienta.

Reclamamos baixinho, mas baixamos a cabeça e até nos confortamos com certos argumentos de autoridade que nos desresponsabilizam na hora de decidir. Habituados a ter de obedecer e não a pensar, esperamos que nos digam o que podemos e não podemos fazer, porque deixados à nossa consideração, tendemos a ficar à toa com tanta liberdade.

A discussão em torno do que vamos poder ou não fazer no Natal e no Ano Novo lembra-me esta nossa incapacidade crónica para nos autogovernarmos.

Não devia competir ao Governo decidir como podemos passar as nossas festas de família, e a que riscos devemos, cada um de nós, estar sujeitos. Não é preciso ser médico ou epidemiologista para perceber que a situação está ainda muito complexa, basta olhar para os gráficos e relatórios diários. Não é só em Portugal, é em toda a Europa. A Holanda vai entrar em confinamento total, na Alemanha serão impostas novas restrições apertadas, no Reino Unido a situação é “extremamente preocupante”, em Espanha e Itália deverão ser impostas mais medidas. Até na Suécia, resistente crónica a planos de contingência, o ressurgimento da doença exigiu a adoção de medidas excecionais e fez soar os alarmes da necessidade de um pedido de auxílio aos países vizinhos.

Ao contrário do verão, em que os novos casos diários e o número de mortos desceram muitíssimo, o risco de contaminação agora é elevado. As novas medidas impostas pelo Governo resultaram, mas não baixaram de forma drástica os contágios nem os mortos.

Sou adulta e capaz de entender que situações excecionais exigem soluções excecionais. Não preciso que um primeiro-ministro me diga que tenho de adotar todos os cuidados possíveis nesta quadra festiva, reduzindo ao máximo o número de pessoas na festa (outrora com mais de 40 pessoas), mantendo as máscaras sempre colocadas, os desinfetantes sempre à mão e as salas arejadas. E escolho fazê-lo porque sim, porque sigo a Ciência e os médicos, e não porque me mandam.

Esta semana, soube de uma história próxima que me tirou o sono. Uma amiga de uma amiga apanhou Covid, infetou a mãe num jantar de família, e a progenitora, já idosa, veio a falecer.

É uma situação que pode acontecer a qualquer um, por mais cuidadoso e bem intencionado que seja. O pior pesadelo da Covid é a ideia de contaminar familiares e amigos e estes passarem muito mal ou até morrerem. Viver com esse peso e gerir essa dor é algo que não consigo sequer imaginar. Isso acontecer num Natal é arruinar todas as festas daí em diante. Mesmo sem receber a visita do Espírito dos Natais Futuros, como no conto do Charles Dickens, este é um risco que ninguém minimamente informado e no seu perfeito juízo deveria estar disponível para correr. Com ou sem medidas impostas pelo Governo.

(Mafalda Anjos, (visão)

 

Hoje estou mais feliz.

M. Martins, 17.12.20

Haverá,  há certamente, quem não saiba que sou um doente oncológico ,sim, é verdade, nunca fiz uso dessa condição nas minhas publicações, nunca me pareceu que tivesse alguma importância,mas hoje vou fazer, pode ser até que um dia destes publique as minhas "crônicas de uma doença anunciada", estão guardadas algures por aqui, depois veremos, por agora vou apenas partilhar com vocês o estado de felicidade que se apoderou de mim hoje após mais uma consulta de oncologia médica no IPO Coimbra.

Sem entrar em  grandes pormenores; hoje, tive consulta de oncologia médica com análises , tinha também para a consulta, uma T A C que já tinha sido feita em setembro.
Fruto da situação que vivemos o SNS está com muitos problemas, podemos falar disso mais adiante, ou não, porque eu estou tão feliz que não quero estragar o momento com algo que possa ser entendido fora do contexto desta minha felicidade.
Após seis anos e nove meses de visitas continuas, umas semanais(duas vezes para tratamentos e consulta), outras quinzenais, muito tempo depois,  mensais, bi-mensais , trimestrais , quadrimestrais e ainda semestrais. Por fim , hoje, recebo a notícia mais esperada para além da costumeira, "está tudo bem, as (suas análises estão muito boas", hoje tive tudo isso e mais, " nós vamos dar-lhe alta, não vemos razão para continuar aqui com nós, mas não tem alta do ipo, vai continuar a vir cá para consulta de controle, mas em peneumologia", para quem não sabe tive cancro no pulmão , fui amputado do pulmão esquerdo, em boa altura,.
Claro, só quem já passou por uma situação parecida poderá compreender o que eu senti...apeteceu-me saltar da cadeira, tirar a máscara, abraçar e beijar toda a gente , gente boa, gente interessada, gente família, sim "gente família" a frase é minha, assumua. Não me vim embora sem que primeiro me fosse explicado passo a passo  como tudo irá decorrer apartir de agora...

Sobre os profissionais do IPO Coimbra que cuidaram  de mim e me acarinharam durante seis anos e nove meses eu tenho muito mais a dizer, não cabe tudo aqui, voltarei a falar deles, não esquecerei nunca!!

  Bem hajam !,

hoje estou mais feliz,,,

 

 

Amadeo F. de Sauza-Cardoso

M. Martins, 16.12.20

Margarida Vale; Nós  e a história 


Amadeo Ferreira de Souza-Cardoso nasceu a 14 de Novembro de 1887, em Manhufe, freguesia de Mancelos, concelho de Amarante. Filho de José Emygdio de Souza-Cardoso, grande proprietário rural e de Emília Cândida Ferreira Cardoso. O seu tio materno, Francisco José Lopes Ferreira Cardoso, carinhosamente apelidado de “Tio Chico”, apoia-o desde muito novo na sua vocação artística.

Em 1905, Amadeo parte para Lisboa com a intenção de seguir o curso de Arquitetura na Academia de Belas-Artes. É na capital que desenvolve a atividade de desenhador e sobretudo de caricaturista, desde logo apoiada e apreciada pelo seu amigo Manuel Laranjeira.

No dia em que completa 19 anos parte para Paris na companhia de Francisco Smith e vai viver no Boulevard de Montparnasse. Frequenta ateliês de preparação para o concurso à Escola de Belas Artes com o objetivo de cursar Arquitetura.

A 6 de Janeiro de 1907, realiza-se um jantar no restaurante Daumesmil, no Quartier Latin, Amadeo desenha a ementa e nela coloca a caricatura de todos os comensais, no dia 13 de Janeiro este desenho é publicado no jornal portuense “O Primeiro de Janeiro”. Desiste da Arquitetura para se dedicar inteiramente à pintura e reinstala-se no número 33 da Rua Denfert-Rochereau. Em Outubro realiza uma viagem à Bretanha acompanhado pelo pintor português Eduardo Viana.

Em 1908 aluga o estúdio nº 21, no 14 Cité Falguiére onde reúne artistas portugueses – Manuel Bentes, Emmérico Nunes, Eduardo Viana, Domingos Rebelo, Francisco Smith entre outros. Um excerto de uma entrevista de Domingos Rebelo ao jornal “O Século”, a 20 de Outubro de 1970, deixa vislumbrar um pouco das tertúlias que por lá se faziam. “ [...] o atelier de Amadeo de Sousa Cardoso, no 14 Cité Falguière, que era de todos nós o que vivia com maior abastança, pois era filho de uma rica família de Amarante [...] tornou-se um centro de reunião. Iam lá todas as noites o Manuel Bentes, o Ferraz, o arquiteto Collin, o Emmérico Nunes e eu. [...] ”.

Ainda nesse ano conhece Lúcia Pecetto com quem viria a casar em Portugal no ano de 1914.

Em 1909 volta a mudar de estúdio, desta feita para o nº 27, Rue des Fleures. É um ano importante este na medida em que passa a frequentar a Academia Viti dirigida pelo pintor espanhol Anglada Camarasa e que conhece o pintor italiano Amadeo Modigliani.

Dois anos depois volta a mudar-se, agora para o nº 3 da Rue du Colonel Lombes onde expõe juntamente com Modigliani. Relaciona-se com o crítico Walter Pach e com os artistas Archipenko, Brancusi, Picabia, Juan Gris, Diego Rivera, Sónia e Robert Delaunay. Expõe seis trabalhos no XXVIII Salon des Indépendants em Paris.

Em 1912 Amadeo de Souza-Cardoso publica o álbum “XX Dessins” com prefácio de Jerôme Doucet. Desenha e ilustra o manuscrito de “La Légende de Saint Julien L’Hospitalier” de Flambert. Expõe no XVIII Salon des Indépendants (Paris) e no Salon d’Automme (Paris). Conhece Boccioni e Severini.

No ano seguinte participa no Armory Show, em Nova Iorque, com oito trabalhos, exposição essa repetida em Chicago e Boston. Três destes trabalhos são adquiridos pelo crítico de arte Arthur Jerome Eddy. Expõe coletivamente no I Salão de Outubro de Berlim, conhece o pintor alemão Otto Freundlich.

Algumas das suas obras são reproduzidas no livro de Arthur Jerome Eddy “Cubist and Post-Impressionist”. Em Abril de 1914 envia três trabalhos para o London Salon, exposição que entretanto não se realiza devido ao início da I Grande Guerra Mundial. No Verão desse ano encontra-se em Barcelona com o arquiteto Antoni Gaudi e visita o seu amigo escultor Sola. Surpreendido pela eclosão da Guerra, em Madrid, regressa a Manhufe dividindo o tempo entre a casa materna (já casado com Lúcia) e a casa de Espinho.

Em Manhufe, Amadeo de Souza-Cardoso trabalha na Casa do Ribeiro, casa pertencente ao tio Francisco. No ano de 1915 o casal Sónia e Robert Delaunay chega a Portugal e instala-se em Vila do Conde onde Eduardo Viana é visita frequente.

Em 1916 Amadeo publica uma seleção de “12 Reproductions” (Porto, Tipografia Santos). Em Lisboa, o pintor encontra-se com José de Almada Negreiros e o Grupo da Revista Orpheu, revista que tencionava publicar um terceiro número no qual reproduziria obras de Amadeo. É neste ano que o artista realiza duas exposições em Portugal. A primeira, em Novembro, no Porto, mais concretamente no Jardim Passos Manuel, tem como título: “Abstracionismo”. Composta por 84 pinturas a óleo e a cera, 19 aguarelas e 11 desenhos, esta exposição é recebida com hostilidade por parte do público. Em Lisboa, a mesma, realiza-se na Liga Naval, não tem título e é acompanhada por um texto/manifesto de Almada Negreiros.

Em 1917 o mesmo Almada dedica-lhe o livro “K 4 o Quadrado Azul”. Sónia e Robert Delaunay partem para Madrid mas continuam a manter uma profícua correspondência com os seus amigos portugueses.

No ano de 1918 uma doença de pele impede Amadeo de pintar. A 25 de Outubro morre bruscamente em Espinho, vítima da epidemia “pneumónica” que assolou a Europa no final da Guerra.

Desabafos natalícios

M. Martins, 14.12.20

 


Uma ceia inesperada – J. J. Letria
 

Numa noite gelada de Dezembro, dois pobres cães vadios procuravam abrigo debaixo de uma grande árvore de Natal erguida no meio de uma praça, com uma vistosa iluminação que podia ser observada até do céu. Debaixo dos ramos da árvore e próximo do calor das lâmpadas fortes, eles conseguiam ter algum conforto, protegendo-se da chuva e do frio intenso.

Disse um dos cães para o companheiro:

— Há quanto tempo andas nesta vida?

— Desde o Verão passado. Os meus donos foram de férias e, como acharam que dava muito trabalho arranjar quem tomasse conta de mim, abandonaram-me. Foi assim que me tornei vadio, embora seja um cão de raça.

— Quer então dizer que é o primeiro Natal que passas na rua?

— Sim, é o primeiro. E tu?

— Para mim já é o terceiro. Eu não sou um cão de raça, sou um rafeiro, e tinha uma dona que gostava muito de mim. Eu era a sua única companhia. Um dia ela adoeceu e acabou por morrer.

— E o que foi que te aconteceu?

— Os filhos da minha dona não quiseram ficar com este encargo e puseram-me na rua. Já por cá ando há algum tempo, remexendo nos contentores, bebendo água das poças e das sarjetas e fugindo das camionetas da Câmara que trazem homens com redes para nos apanharem.

— Pois olha que eu ainda não me habituei a esta vida e nem sei se alguma vez me habituarei. Ainda estou muito zangado com os meus donos por me terem feito o que fizeram. Pareciam gostar muito de mim, gabavam-se muito da minha beleza e da minha raça, mas acabaram por me abandonar, dizendo aos filhos que alguém me roubou quando eu passeava sem trela.

— Já ouvi contar muitas histórias como a tua, e olha que cada vez há mais. As pessoas são egoístas e quando nos põem em casa não pensam nas responsabilidades que têm para connosco.

— Mas parece que com os gatos isso não acontece, e repara que eu não gosto nada de gatos.

— Estás enganado. Também há muitos gatos abandonados e há alturas em que nos podíamos entender, já que os nossos problemas são os mesmos quando se trata de abandono.

— Então e qual é o teu desejo para esta noite de Natal?

— Para dizer a verdade, o que eu desejava é que estas lâmpadas se transformassem em ossos saborosos e numa refeição quente. Se isso acontecesse, eu até era capaz de acreditar que há um céu para os cães.

Mal ele acabou de pronunciar estas palavras, caíram sobre eles vários ossos e duas latas de comida apetitosa. Ambos se refastelaram com a abundância e com a qualidade da refeição que iria marcar para sempre a memória que ambos guardariam daquela noite de Natal.

Certamente haverá quem diga que nunca as lâmpadas coloridas de uma árvore de rua se poderiam transformar em comida para cães abandonados. Mas também é verdade que os cães não costumam falar, e os desta história, para que nos lembremos sempre da solidão dos que são condenados a tornar-se vadios, falaram durante um bom bocado. Vale esta história para que não esqueçamos os que não têm tecto, neste ou nos próximos Natais.

José Jorge Letria
A Árvore das Histórias de Natal
Porto, Ambar, 2006
adaptaçã

O sono

M. Martins, 12.12.20

O Sono

O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim —
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
E o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono! ...

Álvaro de Campos

 
 
 

 

Hoje estou assim,,,

M. Martins, 07.12.20

O amor romântico é como um traje, que, como não é eterno, dura tanto quanto dura; e, em breve, sob a veste do ideal que formamos, que se esfacela, surge o corpo real da pessoa humana, em que o vestimos. O amor romântico, portanto, é um caminho de desilusão. Só o não é quando a desilusão, aceite desde o princípio, decide variar de ideal constantemente, tecer constantemente, nas oficinas da alma, novos trajes, com que constantemente se renove o aspecto da criatura, por eles vestida.

Fernando Pessoa

Aproveitem a vida

M. Martins, 04.12.20

Aproveitem a Vida", de António Feio e lançado em 2010, é um livro onde o autor pede às pessoas que resolvam o problema da melhor maneira e que não fiquem de mãos cruzadas.
"Se as pessoas começarem a parar por um momento para olhar para casos como o meu, ou, simplesmente, para a sua própria vida com olhos de ver, talvez comecem a relativizar os seus próprios problemas e possam perceber o que de facto vale a pena na vida. Talvez assim a consigam aproveitar melhor. Aproveitem a vida e ajudem-se uns aos outros!!!"