Não é do navio, é de nós, que sentimos saudades.
(Alberto Caeiro) A noite passada, a chuva foi tanta que a estrada desapareceu. De madrugada, saí da tenda, avaliei os danos e, ao deparar com a viatura afundada na lama, pensei que o melhor seria aproximar-me do rio, atravessando sozinho e a pé a densa floresta cuja largura eu desconhecia. Quem sabe um pescador me conduzisse até à vila? Com as chuvas ininterruptas, o rio tinha galgado os antigos limites e era difícil saber o que era margem e o que era leito. Nas florestas espessas, onde não se enxerga senão sombras, os rios descobrem-se pelo céu. Sobre as nossas cabeças abre-se um sulco torto de luz? Pois, é por baixo desses sulcos que se enroscam os cursos de água.
Imaginei pelo limite das copas que aquele chão onde afundava os meus passos seria a antiga orla do rio. Na terra lodosa, depositei a minha bagagem e sentei-me sobre a caixa dos víveres. Contemplei a floresta e pensei: não havia melhor lugar para esperar.
Mesmo que fosse para esperar por coisa nenhuma.
Pouco me importava o tempo: eu ansiava esquecer o mundo, exilar-me da cidade, emigrar de mim.
Eu sofria da fome do longe, mas a minha verdadeira doença era o antecipado tédio de haver um destino.
De súbito, uma silenciosa sombra despertou a minha entorpecida vigília. Uma canoa surgia lá ao fundo, ainda sem forma. Era apenas um sobressalto na luz que nascia das águas. Pedi ao homem do barco que me levasse rio acima. Ele mediu os meus pertences enquanto usava o remo para avaliar o espaço disponível na canoa. Com um menear de cabeça mandou que eu tomasse lugar na embarcação.
Lentamente, fomos subindo o rio. A corrente era forte e, durante horas, a quilha rasgando as águas foi o único ruído que se escutou. O barqueiro recusou a minha ajuda. Argumentou que o rio estava habituado ao seu jeito de remar. E não voltou a pronunciar palavra.
Ao princípio da tarde, encostou a canoa à margem e ajudou-me a retirar a minha bagagem. Apercebi-me de que iríamos pernoitar naquela clareira. O homem deu-me a beber um líquido escuro. Acreditei ser uma infusão, dessas que se usam para enganar a fome e o cansaço. É chá, tranquilizou-me, reparando na demora em levar a chávena aos lábios. Chá de quê?, perguntei. O pescador rodopiou a mão em frente do rosto e explicou: era dessas plantas que crescem junto ao leito. Não precisava de sair da embarcação para recolhê-las, não precisava da terra firme para fazê-las ferver.
– O gosto não é bom – avisou-me.
– Mas ajuda a adormecer. O senhor vai-se deitar aqui, mas vai dormir muito longe.
– Longe? – Onde nascem os rios.
Nessa noite, fui assaltado por sonhos estranhos. Primeiro, vi-me a ficar desencarnado, como se os ossos estivessem a apartar-se do corpo. E pensei: Estou a ser devorado pelo meu esqueleto. Tudo aquilo, porém, sucedia sem dor, sem sobressalto.
Sacudia os braços e a carne tombava como uma flor que se liberta das pétalas.
Quando dei por mim estava em osso vivo, apenas a cabeça permanecia intacta. A noite em meu redor era tão escura e espessa como a infusão que me fora dada a beber. Apenas percebi que chovia ao escutar as gotas tombando sobre as pedras do rio. Aos poucos, reparei que me regressava o corpo. A chuva preenchia-me, todo eu era uma insaciável raiz. Sobre a pele, a água não escorria. Os meus poros absorviam os pingos de chuva, cada gotícula empreendendo um lento regresso.
Acordei, o barqueiro já preparava a embarcação. Espreguicei-me, passei água pelo rosto.
– Morri esta noite – confessei ao meu companheiro de viagem, esfregando os joelhos.
– Fico feliz – comentou ele, sorrindo.
Sentia realmente que não tinha acordado: eu tinha nascido pela segunda vez, o meu corpo parecia estranhar a minha presença.
– Doem-me os ossos – queixei-me enquanto me sentava no ventre da canoa.
– Os nossos ossos não são nossos – corrigiu o barqueiro. – Pertencem aos parentes que já faleceram.
Entregam-nos de noite. E levam-nos na noite seguinte.
– Não devia ter bebido o seu chá – confessei, arrependido. – Não imagina o sonho que tive esta noite.
– Ninguém tem sonhos, meu amigo. Os sonhos andam, como aves, à procura do sonhador.
Olhei por entre a copa das árvores e magoou-me a luz naquela pequena fresta de céu.
– Chegamos à vila ainda hoje? – quis saber.
– Qual vila? – perguntou o homem.
– Bom... quero dizer, à vila mais próxima.
– Aqui não há nenhuma povoação, meu amigo. Há anos que vivo neste rio. Trouxe o senhor comigo porque já não me lembrava de como era ser gente.
– Deixe-me então onde me encontrou – proferi. E era mais uma ordem do que um pedido.
O homem sorriu. E permaneceu silencioso, remando sem qualquer esforço, como se os remos fossem feitos de água. Um pouco depois, parou e pediu-me que me pusesse de pé.
– Abrace-me – pediu.
Hesitei. Mas, depois, deixei-me envolver pelos seus longos braços. Aos poucos, fui estreitando aquele corpo de encontro a mim. Até que senti os remos resvalaremme dos dedos. E quando me soltei do abraço vi que estava sozinho no barco. E não havia bagagem nenhuma.
Apenas eu, o ventre do barco e um rio escorrendo eternamente dentro de mim.