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Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

ESPERO QUE TUDO ESTEJA LÁ

M. Martins, 31.01.21

 

O futuro está borrado e
O passado acabado
Como se tivesse sido apagado  
Com borracha branca 
Muito gasta 

Não vejo nada claro 
Como se o presente fosse desenhado 
Em papal branco manchado 
Achado por aí...

Os dias normais já morreram?

Como se o mundo fosse pintado 
Do Tom mais sinistro
De preto e vermelho
Do sangue sendo  
Derramado...

Mas espero que tudo esteja lá
Ainda, quando eu acordar
Espero mesmo que tudo esteja lá
Ainda, quando eu acordar
No mesmo lugar que sempre esteve
Mas que eu não sabia procurar.

Acaso

Álvaro de Campos

M. Martins, 28.01.21

Acaso
No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata, Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente! Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar, Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade Numa outra espécie de rua;
Por que todas as recordações são a mesma recordação, Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal ...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

Eu vi o amor

M. Martins, 26.01.21

Eu vi o Amor — mas nos seus olhos baços
Nada sorria já: só fixo e lento
Morava agora ali um pensamento
De dor sem trégua e de íntimos cansaços.

Pairava, como espectro, nos espaços,
Todo envolto n'um nimbo pardacento...
Na atitude convulsa do tormento,
Torcia e retorcia os magros braços...

E arrancava das asas destroçadas
A uma e uma as penas maculadas,
Soltando a espaços um soluço fundo,

Soluço de ódio e raiva impenitentes...
E do fantasma as lágrimas ardentes
Caíam lentamente sobre o mundo!

Antero de Quental, in "Sonetos"

Eleições Presidenciais

Texto do professor António Galopim de Carvalho

M. Martins, 25.01.21

O QUE RETIVE DA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE ONTEM.
Relativamente a Marcelo Rebelo de Sousa, tinha, como praticamente todos os comentadores, a certeza de que a vitória seria sua, o que se confirmou amplamente. Os 60,70%, na eleição de ontem, ultrapassaram os 50,00%, obtidos em 2016, um aumento significativo devido aos votos de uma boa parte do PS, que ultrapassou, assim, largamente os votos (11,90) dos saudosistas do antigamente (desde sempre escondidos no seio do CDS e do PSD) que, a coberto do voto secreto, se deslocaram para o candidato da extrema-direita. Como já aqui escrevi, respeito o ganhador desta eleição como político, como profissional e como cidadão. Conheço-o, de há muito, como colega na Universidade de Lisboa e posso confirmar as qualidades pessoais que lhe dão a merecida popularidade.
Como escrevi há dias, o meu campo político sempre foi e é o oposto do dele, o que não impede que lhe esteja grato por tudo o que fez de positivo, com destaque para o facto de ter dado condições de governabilidade e estabilidade social e política ao governo da chamada Geringonça, permitindo que esta expressão, inicialmente proposta, pela direita, como pejorativa, passasse a inspirar simpatia e carinho da maioria dos portugueses. Grato, ainda, por ter posto fim a um viver crispado que foi o nosso nos tempos que antecederam a sua eleição.

No texto que aqui editei no último dia do ano que findou, escrevi: “É pena que, na actual legislatura, o Bloco de Esquerda se tenha afastado (quanto a mim, um erro de palmatória que lhe vai custar caro), pondo fim a uma força capaz de se opor a uma direita que começa a “deitar a cabeça de fora”. Uma direita, volto a dizer, fortemente apoiada pelos grandes interesses do mundo das finanças de dentro e de fora das nossas fronteiras e por uma poderosa comunicação social ao seu serviço, que continua a tentar o possível e o impossível para minar os entendimentos conseguidos à esquerda. Todos os dias, esta mesma comunicação social, agarra e avoluma tudo o que possa fragilizar António Costa e o seu governo, procurando tirar proveito de uma profunda crise pandémica e consequentemente económica, que nenhum outro governo enfrentou”.
E o erro de palmatória então cometido pelo Bloco de Esquerda (que nessa data antevi e mereceu alguns reparos por parte de bloquistas em comentários que me dirigiram) ficou ontem, por demais, confirmado com a decepcionante votação em Marisa Matias (3,95%) contra os 10,12% conseguidos nas presidenciais de 2016, ou os 10,1%, nas legislativas de 2019. Tenho pena que esta candidata, de elevada competência política, tenha sido o alvo desta, para ela, grande desfeita. Marisa Matias pagou caro o facto de o seu partido se ter colocado ao lado dos partidos de direita, votando contra o orçamento de 2019.

No que se reporta ao PCP considero este partido fundamental para o equilíbrio da democracia. Por força da respectiva ideologia, representa uma defesa intransigente dos mais fracos, numa sociedade democrática como é a nossa, onde as desigualdades são gritantes. O PCP é um partido de gente honrada e patriota, que sabe viver em democracia. Viu-se, ultimamente, na aprovação do Orçamento de Estado para 2021, abstendo-se, impedindo uma crise política, num período tão difícil da vida nacional.

Estamos a assistir ao assustador surgimento de uma ideologia fascizante, antissistema, declaradamente contra a constituição do “vinte cinco de Abril sempre”, do “povo unido jamais será vencido”, que, como disse atrás, tem crescido dissimulada no seio dos partidos democráticos de direita. Face a esta preocupante realidade e para a defesa da democracia, importava que o Partido Comunista saísse politicamente reforçado desta eleição, o que não aconteceu. Se é certo que João Ferreira com os seus 4,32%, ora conseguidos, melhorou algumas décimas face aos 3,94% de Edgar Silva, em 2016, a verdade é que perdeu estrondosamente, para o seu maior inimigo, a hegemonia que tinha no Alentejo, o que é, deveras, preocupante. Não é novidade para ninguém que, para os saudosistas da direita mais reaccionária, agora a surgirem à luz da liberdade que a democracia lhes oferece, os comunistas continuam a ser o inimigo a abater.
A verdade é que acordámos, de repente, para uma situação em que um adversário, nascido e consentido dentro do sistema, se propõe destruí-lo. Recordemos o que se passou na política alemã, em 1939 e toda a tragédia mundial que se lhe seguiu. É, pois, necessário e urgente que partidos democráticos do espectro político nacional revejam as suas condutas e, com espírito construtivo, os relacionamentos que têm vindo a manter entre si.

O parto póstumo

M. Martins, 22.01.21

O parto póstumo 
Ao princípio da tarde, encostou a canoa à margem e ajudou -me a retirar a minha bagagem. Apercebi- -me de que iríamos pernoitar naquela clareira. O homem deu-me a beber um líquido escuro.

Acreditei ser uma infusão, dessas que se usam para enganar a fome e o cansaço.

É chá, tranquilizou- -me, reparando na demora em levar a chávena aos lábios
 
Não é do navio, é de nós, que sentimos saudades.

(Alberto Caeiro) A noite passada, a chuva foi tanta que a estrada desapareceu. De madrugada, saí da tenda, avaliei os danos e, ao deparar com a viatura afundada na lama, pensei que o melhor seria aproximar-me do rio, atravessando sozinho e a pé a densa floresta cuja largura eu desconhecia. Quem sabe um pescador me conduzisse até à vila? Com as chuvas ininterruptas, o rio tinha galgado os antigos limites e era difícil saber o que era margem e o que era leito. Nas florestas espessas, onde não se enxerga senão sombras, os rios descobrem-se pelo céu. Sobre as nossas cabeças abre-se um sulco torto de luz? Pois, é por baixo desses sulcos que se enroscam os cursos de água.

Imaginei pelo limite das copas que aquele chão onde afundava os meus passos seria a antiga orla do rio. Na terra lodosa, depositei a minha bagagem e sentei-me sobre a caixa dos víveres. Contemplei a floresta e pensei: não havia melhor lugar para esperar.

Mesmo que fosse para esperar por coisa nenhuma.

Pouco me importava o tempo: eu ansiava esquecer o mundo, exilar-me da cidade, emigrar de mim.

Eu sofria da fome do longe, mas a minha verdadeira doença era o antecipado tédio de haver um destino.

De súbito, uma silenciosa sombra despertou a minha entorpecida vigília. Uma canoa surgia lá ao fundo, ainda sem forma. Era apenas um sobressalto na luz que nascia das águas. Pedi ao homem do barco que me levasse rio acima. Ele mediu os meus pertences enquanto usava o remo para avaliar o espaço disponível na canoa. Com um menear de cabeça mandou que eu tomasse lugar na embarcação.

Lentamente, fomos subindo o rio. A corrente era forte e, durante horas, a quilha rasgando as águas foi o único ruído que se escutou. O barqueiro recusou a minha ajuda. Argumentou que o rio estava habituado ao seu jeito de remar. E não voltou a pronunciar palavra.

Ao princípio da tarde, encostou a canoa à margem e ajudou-me a retirar a minha bagagem. Apercebi-me de que iríamos pernoitar naquela clareira. O homem deu-me a beber um líquido escuro. Acreditei ser uma infusão, dessas que se usam para enganar a fome e o cansaço. É chá, tranquilizou-me, reparando na demora em levar a chávena aos lábios. Chá de quê?, perguntei. O pescador rodopiou a mão em frente do rosto e explicou: era dessas plantas que crescem junto ao leito. Não precisava de sair da embarcação para recolhê-las, não precisava da terra firme para fazê-las ferver.
 


– O gosto não é bom – avisou-me.

– Mas ajuda a adormecer. O senhor vai-se deitar aqui, mas vai dormir muito longe.

– Longe? – Onde nascem os rios.

Nessa noite, fui assaltado por sonhos estranhos. Primeiro, vi-me a ficar desencarnado, como se os ossos estivessem a apartar-se do corpo. E pensei: Estou a ser devorado pelo meu esqueleto. Tudo aquilo, porém, sucedia sem dor, sem sobressalto.

Sacudia os braços e a carne tombava como uma flor que se liberta das pétalas.

Quando dei por mim estava em osso vivo, apenas a cabeça permanecia intacta. A noite em meu redor era tão escura e espessa como a infusão que me fora dada a beber. Apenas percebi que chovia ao escutar as gotas tombando sobre as pedras do rio. Aos poucos, reparei que me regressava o corpo. A chuva preenchia-me, todo eu era uma insaciável raiz. Sobre a pele, a água não escorria. Os meus poros absorviam os pingos de chuva, cada gotícula empreendendo um lento regresso.

Acordei, o barqueiro já preparava a embarcação. Espreguicei-me, passei água pelo rosto.

– Morri esta noite – confessei ao meu companheiro de viagem, esfregando os joelhos.

– Fico feliz – comentou ele, sorrindo.

Sentia realmente que não tinha acordado: eu tinha nascido pela segunda vez, o meu corpo parecia estranhar a minha presença.

– Doem-me os ossos – queixei-me enquanto me sentava no ventre da canoa.

– Os nossos ossos não são nossos – corrigiu o barqueiro. – Pertencem aos parentes que já faleceram.

Entregam-nos de noite. E levam-nos na noite seguinte.

– Não devia ter bebido o seu chá – confessei, arrependido. – Não imagina o sonho que tive esta noite.

– Ninguém tem sonhos, meu amigo. Os sonhos andam, como aves, à procura do sonhador.

Olhei por entre a copa das árvores e magoou-me a luz naquela pequena fresta de céu.

– Chegamos à vila ainda hoje? – quis saber.

– Qual vila? – perguntou o homem.

– Bom... quero dizer, à vila mais próxima.

– Aqui não há nenhuma povoação, meu amigo. Há anos que vivo neste rio. Trouxe o senhor comigo porque já não me lembrava de como era ser gente.

– Deixe-me então onde me encontrou – proferi. E era mais uma ordem do que um pedido.

O homem sorriu. E permaneceu silencioso, remando sem qualquer esforço, como se os remos fossem feitos de água. Um pouco depois, parou e pediu-me que me pusesse de pé.

– Abrace-me – pediu.

Hesitei. Mas, depois, deixei-me envolver pelos seus longos braços. Aos poucos, fui estreitando aquele corpo de encontro a mim. Até que senti os remos resvalaremme dos dedos. E quando me soltei do abraço vi que estava sozinho no barco. E não havia bagagem nenhuma.

Apenas eu, o ventre do barco e um rio escorrendo eternamente dentro de mim.

O Luxo

M. Martins, 20.01.21

O Luxo Fizeram-nos acreditar que o luxo era o raro, o caro, o exclusivo, ter muito, muito dinheiro! Tudo aquilo que nos parecia inalcançável! Agora damo-nos conta, de que o luxo eram esses pequenos gestos que não sabíamos valorizar/apreciar, porque, e tão simplesmente, por serem gratuitos! Aprendemos agora que: Luxo, é estar são! Luxo, é cumprimentar alguém com a mão! Luxo, é não pisar nenhum hospital! Luxo, é poder passear pela orla do mar e ouvir o sussurrar das ondas! Luxo, é passear pelo parque e conversar à vontade com alguém, sem quaisquer receios de nada! Luxo, é poder sair às ruas, trabalhar e respirar, sem máscaras... Luxo, é poder reunir-se com a família! com seus amigos, abraçar, beijar! Luxo, são os olhares! Luxo, são os sorrisos! Luxo, é vivenciar intensamente as nossas alegrias! Luxo, são os abraços e os beijos! Luxo, é desfrutar vivamente cada instante, cada amanhecer, cada entardecer! Luxo, é o privilégio de amar e de estar vivo. Luxo, é dar mérito aos nossos verdadeiros amigos, e àqueles que nos querem bem! Luxo, é acarinhar, abraçar os nossos velhinhos doentes, que nos são tão queridos! Tudo isso é um luxo, e não sabíamos!... Prisioneiros nos encontramos, na esperança da liberdade, que desapareceu das nossas vidas!...

Autor desconhecido

Estou cansado, é claro,,

Porque também eu me sinto cansado

M. Martins, 15.01.21

Estou cansado, é claro, Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado. De que estou cansado, não sei: De nada me serviria sabê-lo, Pois o cansaço fica na mesma. A ferida dói como dói E não em função da causa que a produziu. Sim, estou cansado, E um pouco sorridente De o cansaço ser só isto — Uma vontade de sono no corpo, Um desejo de não pensar na alma, E por cima de tudo uma transparência lúcida Do entendimento retrospectivo... E a luxúria única de não ter já esperanças? Sou inteligente: eis tudo. Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto, E há um certo prazer até no cansaço que isto me dá, Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Nada temas

Poema inédito roubado a Beatriz Aquino

M. Martins, 13.01.21

Nada temas

Tudo segue a contento.
O rio em que pisas há de lamber a dor dos teus passos.
Na outra margem dele,
armas vorazes e também mãos amigas.
Porque é preciso equilíbrio.

Não te inquietes.
O vento frio há de soprar pra longe a arrogância dos teus dias ensolarados.
A ausência na noite te ensinará a ternura no próximo toque.

Espera,
agora que a relva seca.
Que as árvores não te dão abrigo.
Que os sorrisos se escondem por trás das máscaras.
Tudo é providência para que teu semblante se torne mais ameno.
E ao atravessar a ponte dos teus dias, acabrunhado e roto, verás que apesar de curvado e porque não dizer um pouco triste,

a serenidade se apossou gentilmente dos teus ossos.
E é então que aprenderás a cantar para o vento.

UM MUNDO QUE NÃO É SÓ NOSSO

“Roubado”

M. Martins, 11.01.21
UM MUNDO QUE NÃO É SÓ NOSSO
O que podemos aprender com a Natureza durante estes dias de confinamento? Uma professora de Ecologia e Entomologia explica
 
 


Imagens dos noticiários mostraram javalis deambulando pelas cidades do Sul da Europa, veados caminhando e dormindo nas ruas do Japão, e uma família de gansos-egípcios a atravessar a pista vazia do aeroporto de Tel Aviv. A água tornou-se visivelmente mais limpa nos canais de Veneza.

Cabras selvagens alimentavam-se em sebes dos jardins ingleses e bandos de perus selvagens sacudiam as penas relaxadamente no campus da Universidade de Harvard como se ainda pudessem habitar as florestas que um dia por lá existiram. Mas estes são apenas exemplos urbanos do que acontece em qualquer lugar quando o Homem recua e se abre espaço para o mundo natural. Cenários de uma pandemia que fechou a Humanidade em 2020.

Mas há outra perspetiva, a do meio natural sem a atividade humana.

No confinamento tive o privilégio de não ter de ficar “fechada”. Na primavera, há muito trabalho de campo a fazer enquanto tenho de estudar as espécies de libélulas de montanha. As estradas, os caminhos e desvios a corta-mato são-me familiares, mas desta vez não passavam carros, ninguém se banhava nos ribeiros ou praias fluviais, nem se ouviam vozes. Abril e maio trouxeram uma profusão de flora, este ano não controlada por herbicidas. Voltei a ver espécies que há muito escasseavam. A vegetação cresceu nas bermas, a reclamar o alcatrão, e as aves, menos receosas, ouviam-se e viam-se em abundância e diversidade.

Os abelharucos, chegados de África, pousavam em fila nos cabos entre postes, em breve edificando os seus ninhos escavados nas terras arenosas das vertentes. Este ano voltaram a fazê-los junto às estradas, porque ninguém passava.

As lebres e os coelhos, admiravelmente, não se escondiam ou fugiam em saltos cruzados, dos caçadores e seus cães porque estes, nesta primavera, não apareceram em grande número como habitual. Ao amanhecer, a vida é intensa para as espécies, nos seus sons, interações e comportamentos e foi extraordinário ser a única espectadora da alvorada.

Embora não muito distante da urbe, parecia que o mundo era só meu, facto fantasiado que não me assustou no momento porque, para qualquer amante da Natureza, a riqueza das experiências resultantes da plenitude de uma observação silenciosa e contemplativa torna-se lição imperdível.

No início do verão, ainda em distanciamento social, voltei aos rios. Por coincidência, ou não, as libélulas paravam-me nas mãos o tempo suficiente para conseguir uma foto de algo que antes nunca me tinha acontecido. Uma libélula-serpentina começava a abandonar a sua exúvia de larva, fixada na casca de um amieiro, para depois se tornar um adulto voador. É um processo lento, muito interessante de seguir... por isso, fiquei à espera que se livrasse da sua forma imatura e fosse esticando as nervuras das longas asas para prosseguir a vida noutro formato.

Aprender com a Natureza e emulá-la é uma tarefa árdua e humilde. Quando o que aprendemos melhora o modo como vivemos, ficamos gratos, e isso leva-nos à última etapa do um caminho que resulta num agradecimento prático pelo que aprendemos, cuidando e preservando.

Como muitas vezes observo, para perceber as soluções que a Natureza encontrou para resolver problemas, verifico que depois de uma alteração ou perturbação, inicia-se o processo de reconstrução por meio de interações robustas que são aproveitadas para manter e recuperar funções em crise que são exclusivas de um determinado local. O grau de complexidade e diversidade dentro dos ecossistemas varia com base nas pressões reguladoras que se encontram por lá. É notório perceber que o sistema ecológico não precisa de voltar ao seu estado original para ser resiliente, o que a Natureza nos ensinou é que a mudança e a perturbação podem ser mecanismos para novas possibilidades.

O que o mundo natural aprendeu a fazer foi criar condições que conduzem à vida. E é isso que também temos de aprender. Felizmente, não precisamos de inventar nada.

Precisamos, sim, de sair e perguntar aos génios locais, espécies e ecossistemas, que nos cercam, como a Natureza resolve uma crise? Na nossa era talvez nunca tivéssemos vivido um momento semelhante ao presente, em que uma pausa coletiva forçou comunidades a formas de afastamento social. A incerteza das circunstâncias converteu-se numa oportunidade para uma maior relação de proximidade com a Natureza.

Os cinco sentidos, a atividade cerebral e o sistema nervoso fundem-se na captação da informação sobre o mundo que nos rodeia, oferecendo-nos formas de ver e de interagir com o ambiente, permitindo aprender a usar os princípios regenerativos e resilientes da vida.

O olhar de perto a Natureza e as suas interações recorda-nos como nos encontramos interligados e como é da nossa responsabilidade conservar este planeta, que não é apenas nosso. Chegará o momento em que devemos considerar seriamente a lição de que é possível sustentar o nosso mundo em harmonia com o meio ambiente e seus recursos, observando e copiando o que o mundo natural nos ensina há milhões de anos.

Num mundo que nunca dorme, onde as informações fluem permanentemente, os limites confundem-se e o silêncio deixa de existir. O nosso instinto encaminha-nos de volta à Natureza, com suas lições subtis, porém claras, sobre como viver e trabalhar melhor.

Ao contrário da aprendizagem como cientista, na qual o objetivo está em aprender sobre algo, a prática da emulação do mundo natural trata de aprender com algo.

Consociarmo-nos com o mundo natural também apresenta uma oportunidade única de emergir da pandemia com um relacionamento melhorado com a Natureza. O reconhecimento do valor da mesma deve ser incentivado e, se administrado de maneira adequada, pode encorajar ações ao nível da comunidade para a sua conservação tanto em áreas urbanas como naturais.

Experimentar maior contacto com o ambiente fora das cidades continuará a ser importante também para fomentar uma melhor saúde, mas só será possível se conseguirmos encontrar um equilíbrio saudável entre o uso dos nossos recursos e a proteção das espécies e dos habitats.

A Natureza ensina a subtileza e a riqueza de estratégias resilientes. Embora estas mudem e evoluam como nós, também revelam o que há de melhor na complexa natureza humana.

visao@visao.pt

* É doutorada em Ecologia e docente na Escola Superior Agrária de Castelo Branco – IPCB, além de membro do Centro de Ecologia Aplicada (CEABN) e ilustradora. Participou em várias expedições científicas nacionais e internacionais, das quais resultaram 12 publicações e várias exposições.
(Instagram: @luisalark_)

No breu da escuridão,,

Para um amiga muito especial.

M. Martins, 09.01.21

Fui um eco avulso, sem indulto morando junto
Ao pecado reduzido a cinzas e pó…sepultado ao
Lado da solidão recheada de tenazes versos em reclusão

Fui silêncio em dia de festa engolindo cada lamento mudo
Tamborilando entre vigorosos fragmentos de um sisudo sorriso
Aconchegado à felpuda noite fenecendo sem mais constrangimentos

Fui escuridão nesta noite de um breu quase incalculável
Desabando em mim toda a luz malabarista e imolável
Argamassa dos meus versos perdidos numa hora lentamente maculável

Fui geometria da tua aritmética precisa e sistemática vasculhando
Cada semi-recta onde pernoitámos embrulhados num desejo incansável
Esquadria para tantos beijos multiplicados com um sabor quase inquestionável

Frederico de Castro

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