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Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Quem não tem cão, caça com gato

Outra experiência de leitura,,

M. Martins, 27.02.21

Há algum tempo atrás uma trombose ocular retirou-me setenta por cento de visão da vista direita, junto a isso o facto de a esquerda estar limitada aos seus oitenta por cento. Posto isto percebesse que a escrita, cá, por estes lados está difícil, mais a escrita porque a leitura, essa não foi assim tão afetada, as novas tecnologias tenhem essa vantagem , é  possível aumentar o tamanho do texto o que facilita a leitura, já na escrita....bem aí as coisas são diferentes, não há forma de aumentar o tamanho dos caracteres do teclado, a solução é escrever no iPad utilizando o dedo indicador da mão direita, enquanto a esquerda segura o dispositivo e o aproxima o mais possível da vista, assim vos escrevo este desabafo.

A escrita e a leitura em papel é actualmente para mim um imenso desafio, não está fácil. Claro que tenho fé no tratamento já iniciado, o primeiro injetável já foi aplicado, faltam mais dois para concluir esta fase,,,

o meu desabafo  de hoje é exatamente a propósito da leitura digital.

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Sim, é verdade que o digital nos criou um mundo de possibilidades inimagináveis, sim é verdade que com um simples clik iniciamos uma viagem que muitas vezes, se bem programada, nos leva a dar a volta ao mundo sem sairmos de casa, mas na verdade não é a mesma coise como se a viagem fosse real, principalmente porque não podemos tocar as coisas, sentir os cheiros , contactar com a natureza, falar com as pessoas que com nós se cruzam, gravar na memória as imagens mais interessantes ou tirar  fotos,,,com a leitura passase o mesmo, não tem comparação ler um ebook ou ler um livro em papel, o prazer de mexer e remexer, folhear e voltar a folhear um livro, de cheirar a tinta, virar a página colocar a marcador para ir beber um copo de água, voltar e começar tudo de novo,, pois é, no digital isto não é possível, até o som das folhas a bater umas nas outras quando folhamos, o vento que elas, as folhas, fazem consegue trazer consigo aquele cheiro a papel com tinta,,

Ler um livro, no meu caso particular, é também voltar ao tempo em que estava no ativo, recordando os quase trinta anos a cheirar a tinta da impressora rotativa, o toque dos jornais já impressos nos meus dedos, a verificação exaustiva dos registos para que nada falha-se, a luta diária contra o tempo para que os jornais estivessem na rua quando  a grande maioria das pessoas ainda dormia.

hoje temos uma nova forma de ler é verdade, mas o livro há-de ser sempre o livro, o livro vai continuar a ser o dono de vários locais cá em casa, no livreiro, na mesa da sala de estar, na mesa de cabeceira e até na cozinha, onde há uma coleção de livros de culinária,, continua a ter o seu lugar na mochila ou na mala se for sair...

acabo este desabafo manifestando o meu profundo desacordo em relação ao fecho das livrarias.

como diz o título deste desabafo; quem não tem cão caça com gato, caçar com gato ou caçar como o gato, as duas formas de expressão vão de encontro ao mesmo objetivo, ler, se não em papel, o cão, então ler digital, o tal gato, a caça não para, a leitura também não.  

(A leitura de todos os bons livros é uma conversação com as mais honestas pessoas dos séculos passados.)

René Descartes

M. Martins

 

 

 

 

HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

M. Martins, 23.02.21

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HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

 
Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.
 
(Alexandre O'Neill)
 
 
 

A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias,

M. Martins, 21.02.21
Bernardo Soares

A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias,

 

A tragédia principal da minha vida é, como todas as tragédias, uma ironia do Destino. Repugno a vida real como uma condenação; repugno o sonho como uma libertação ignóbil. Mas vivo o mais sórdido e o mais quotidiano da vida real; e vivo o mais intenso e o mais constante do sonho. Sou como um escravo que se embebeda à sesta — duas misérias em um corpo só.

 

Sim, vejo nitidamente, com a clareza com [que] os relâmpagos da razão destacam do negrume da vida os objectos próximos que no-la formam, o que há de vil, de lasso, de deixado e factício, nesta Rua dos Douradores que me é a vida inteira — este escritório sórdido até à sua medula de gente, este quarto mensalmente alugado onde nada acontece senão viver um morto, esta mercearia da esquina cujo dono conheço como gente conhece gente, estes moços da porta da taberna antiga, esta inutilidade trabalhosa de todos os dias iguais, esta repetição pegada das mesmas personagens, como um drama que consiste apenas no cenário, e o cenário estivesse às avessas...

 

Mas vejo também que fugir a isto seria ou dominá-lo ou repudiá-lo, e eu nem o domino, porque o não excedo adentro do real, nem o repudio, porque, sonhe o que sonhe, fico sempre onde estou.

E o sonho, a vergonha de fugir para mim, a cobardia de ter como vida aquele lixo da alma que os outros têm só no sono, na figura da morte com que ressonam, na calma com que parecem vegetais progredidos!

 

Não poder ter um gesto nobre que não seja de portas adentro, nem um desejo inútil que não seja deveras inútil!

 

Definiu César toda a figura da ambição quando disse aquelas palavras: «Antes o primeiro na aldeia do que o segundo em Roma!» Eu não sou nada nem na aldeia nem em Roma nenhuma. Ao menos, o merceeiro da esquina é respeitado da Rua da Assunção até à Rua da Vitória; é o César de um quarteirão. Eu superior a ele? Em quê, se o nada não comporta superioridade, nem inferioridade, nem comparação?

 

É César de todo um quarteirão e as mulheres gostam dele condignamente.

 

E assim arrasto a fazer o que não quero, e a sonhar o que não posso ter, a minha vida (...), absurda como um relógio público parado.

 

Aquela sensibilidade ténue, mas firme, o sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilégio de penumbra.

 

Livro do Desassossego

Dobrada à Moda do Porto

Álvaro de Campos, in "Poemas"

M. Martins, 20.02.21

 

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio. 

Se me puderes ouvir

M. Martins, 18.02.21

Se me puderes ouvir

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

em “A noite abre meus olhos”

Houve um tempo...

M. Martins, 13.02.21

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Houve um tempo em que amor não era só pele;
e a pele do amor era alma.
Houve tempo em que amor era alma antes de qualquer corpo;
e o corpo do amor era sagrado.
Houve tempo em que amar era sagrado;
e sagrado era o tempo dedicado ao amor.

Agora o tempo é raro,
o corpo é carne,
a alma é cansaço,
e o amor é passado que todos querem esquecer.

Para Sempre

Saudades,, tantas, minha mãe !!

M. Martins, 12.02.21

Para Sempre 

Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento. 

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

- mistério profundo -

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.

 

Carlos Drummond de Andrade

 

Explicação da Eternidade

M. Martins, 09.02.21

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Explicação da Eternidade

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

in "A Casa, A Escuridão"

O dever de ser solidario

M. Martins, 04.02.21

 

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Creio no direito à solidariedade e no dever de ser solidário. Creio que não há nenhuma incompatibilidade entre a firmeza dos valores próprios e o respeito pelos valores alheios. Somos todos feitos da mesma carne sofrente. Mas também creio que ainda nos falta muito para chegarmos a ser verdadeiramente humanos. Se o seremos alguma vez...