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Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Exorcismo da Celeste

Crónica

M. Martins, 23.03.21

"Roubada" ao Carlos Esperança,, 


O Exorcismo da Celeste – Crónica

Em terras da Beira, depois da guerra, a gratidão para com a senhora de Fátima, pela afeição a Portugal, estendia-se ao senhor presidente do Conselho por nos ter livrado do conflito. No Cume* sobrava piedade e faltava comida. Estavam no fim os anos quarenta e os portugueses longe de começarem a ser gente.

A Celeste morava ao cimo do povo, sozinha, e cismava que se matava. Via-se que não regulava bem da cabeça e adivinhava-se a fome que a apoquentava. Suspeitaram os vizinhos de mau olhado e a ti Catrina, calhada nas benzeduras para tal moléstia, já a tinha ido visitar com outras mulheres embiocadas no xaile e os rostos sumidos na copa de enormes lenços pretos. Das conversas delas nada se disse, mas ouviu-se na rua a ladainha:

«Dois to deram, três to tirarão,
foi S. Pedro e S. Paulo e o apóstolo S. João
Sant'Ana pariu Maria, Maria pariu Jesus,
assim como isto é verdade,
livre este corpo de ares, olhares e todo o mal
em louvor de Sant'Ana e Santa Iria...
padre nosso, ave-maria...»

Muitos padre-nossos e ave-marias depois, sem abrandar o mal, as mulheres mais velhas concluíram que deviam ser espíritos que atenazavam a bendita alma da Celeste, tão temente a Deus que ela era, mas nestas coisas de espíritos ruins são estes que escolhem a morada e, embora a oração lhes dificulte a entrada, está provado que não é intransponível a barreira.

A adensar a suspeita ouvia-se na habitação, durante a noite, o barulho de máquina de costura, que não havia, a trabalhar, a perturbar o sono e a aumentar a angústia. À porta juntavam-se pessoas vindas da igreja a ouvir o som que os espíritos produziam. Os poucos que não ouviram, apesar da atenção e do silêncio, conformaram-se com a deficiência auditiva e renderam-se à maioria.

O senhor padre pode ter desconfiado do diagnóstico, o sr. António Bernardo dizia que ela não batia bem da bola, podia até ser dos espíritos, a senhora professora aconselhou um médico, que disparate, o que sabe um médico destas coisas e onde é que o há, mas o povo na sua infinita sabedoria já tinha o veredicto, eram espíritos, só podia ser, falava-se de uma avó falecida há muitos anos, a voz tinha sido reconhecida, faltaram-lhe algumas missas ao trintário na encomendação da alma, não se perde nada em benzer a casa e deixar algum latim – conformou-se, acossado, o padre Pires –, dizem-se as missas em dívida e logo se verá.

A Celeste é mulher e a fatalidade das mulheres serem possuídas, os espíritos malignos aproveitam e, depois de entrarem, são difíceis de expulsar. É um combate para senhores párocos, ou mesmo para um reverendíssimo bispo se as posses da vítima e a malignidade o aconselham. Pouco avezado a tais pelejas, mas com habilitações canónicas e compleição adequada à luta, bem se esforça o padre a desalojá-los. Quem julgue que a força da cruz e do divino devem bastar não conhece os espíritos e o furor que transmitem às mulheres possuídas, levando à exaustão o exorcista que não raro precisa de várias tentativas para se fazer obedecer. Fracassa e fica extenuado, à primeira, o padre Pires, valendo-lhe a gemada que o aguarda com vinho e açúcar, enquanto a ceia e o breviário lhe não retemperam as forças e devolvem a serenidade.

A Celeste não melhora. Continua a ouvir vozes que desconhece, definha. Alguns dias após, no regresso do Carapito, onde tinha ido levar o viático a um moribundo, volta o padre Pires à peleja com o maligno. Pode ser que na vez anterior se tenha entupido o hissope, avariado o crucifixo ou faltado à água a bendição, quem sabe, o senhor prior não costuma partilhar as dúvidas, se dúvidas assaltam o ministro de Deus, isto é um incréu a pensar, a força da fé move montanhas, sempre ouvi dizer, a Celeste pode ter perdido a fé com a fraqueza, e sem fé não adianta, é um esforço inglório, o certo é que o senhor padre volta a entrar naquela casa, se pode chamar-se assim ao sítio, mal nunca faz, senhor eu não sou digna de que entreis na minha morada, isto é uma forma de dizer, a Celeste refere-se a Deus que está em toda a parte, mas quando vem acompanhado do seu representante há de infundir maior respeito, as pessoas humildes dizem estas coisas, o senhor padre mergulha bem o hissope, asperge-o com vigor, desenha cruzes, vai-se ao demo com o latim e as mãos, põe as pessoas a rezar o terço que a irmã Lúcia recomendou contra o comunismo, que também resulta com os espíritos, tudo obra do demo, deixa a reza para os paroquianos e sai da refrega exausto à procura da gemada com vinho, açúcar e nódoas para a batina, sem saber se os espíritos encurralados no corpo frágil obedeceram à ordem de expulsão, onde resistiam acossados à parafernália de alfaias sagradas e pias intimações.

As pessoas esperam na rua alheias ao perigo de serem apanhadas para refúgio dos espíritos em fuga. Nessa noite a máquina de costura inexistente permanece silenciosa e quieta, calam-se as vozes das almas penadas, a Celeste dorme bem pela primeira vez em muitos dias, depois da canja que lhe levaram. Se os espíritos não saíram estão debilitados.

A Celeste, com pouco alento, é certo, volta à horta e à igreja, o exorcismo resulta. Finou-se algumas semanas depois, completamente curada e liberta de espíritos malignos.

*Cume, sede da freguesia de Vila Garcia, a 10 km da Guarda

Jornal do Fundão, 05-12-2003 e Pedras Soltas (ed. 2006)

Dia mundial da poesia

Tríptico

M. Martins, 21.03.21

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Não sei como dizer-te que minha voz te procura

e a atenção começa a florir, quando sucede a noite

esplêndida e vasta.

Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos

se enchem de um brilho precioso

e estremeces como um pensamento chegado. Quando,

iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

pelo pressentir de um tempo distante,

e na terra crescida os homens entoam a vindima

— eu não sei como dizer-te que cem ideias,

dentro de mim, te procuram.

 

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros

ao lado do espaço

e o coração é uma semente inventada

em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,

tu arrebatas os caminhos da minha solidão

como se toda a casa ardesse pousada na noite.

— E então não sei o que dizer

junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.

Quando as crianças acordam nas luas espantadas

que às vezes se despenham no meio do tempo

— não sei como dizer-te que a pureza,

dentro de mim, te procura.

 

Durante a primavera inteira aprendo

os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto

correr do espaço —

e penso que vou dizer algo cheio de razão,

mas quando a sombra cai da curva sôfrega

dos meus lábios, sinto que me faltam

um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer

coisa extraordinária.

Porque não sei como dizer-te sem milagres

que dentro de mim é o sol, o fruto,

a criança, a água, o deus, o leite, a mãe, o amor,

que te procuram.

 

(Herberto Hélder)


Até amanhã minha mãe se Deus quiser!

Hoje faria anos!

M. Martins, 13.03.21

Hoje  farias anos, hoje estaríamos juntos, ou não,fruto deste tempo de pamdemia, mas hoje eu dir-te-ia ; muitos parabéns minha querida mãe que no próximo por cá estejamos todos, e tu dirias; obrigada meu filho lindo! obrigada por te lembrares de mim. Haveria muito mais assunto para  conversar, como está a tua esposa e os meninos, e tu como vais meu filho, estás bem? eu dir-te-ia que sim estou bem minha mãe, graças a Deus !,despedia-me como sempre com um ; até amanhã minha mãe se Deus quizer
Não posso mais estar contigo fisicamente, dizer-te o quanto te amo desejar-te  um feliz aniversário mas tu estás, estarás sempre no meu coração!

como forma de homenagem deixo-te este poema que reflete exatamente o que vai no meu coração.Sim eu sei que não sabes ler, mas qualquer um dos anjos que cuidam de ti tu lerá ,,, vais gostar!


"Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!
Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!"

( Almada Negreiros,)

Entre os pingos da solidão

M. Martins, 09.03.21

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Entre os pingos da solidão a manhã comunga seus afetos com
Aquela luminescência aparatosa, inspiradora e espalhafatosa
A bordo das palavras navega uma hora incauta e caprichosa

Nos céus transborda a esperança urgente e mais ansiosa
Qualquer gargalhada interminável festeja a vida sempre deliciosa
Mesmo quando uma tímida gotícula de luz se esboroa tão pesarosa

Entre os pingos da solidão escorre a seiva do silêncio frondoso
Embriaga-se no mosto dos meus lamentos quase impiedosos
Alvorece entre a multidão de ecos inebriantes e tão meticulosos


Dia Internacional da Mulher:

origens de uma luta que continua

M. Martins, 08.03.21
 

Assinalar o Dia Internacional da Mulher é compreender uma longa luta que está longe de ter terminado e que começou há mais de um século. Pelo menos.

Dia Internacional da Mulher

A igualdade de género é uma discussão que ganhou o seu espaço mediático, mas a verdade é que o caminho é sinuoso e pejado de obstáculos. Persiste o abismo das diferenças salariais entre homens e mulheres, a maternidade continua a ser vista como um entrave profissional, os lugares de chefia sempre ocupados, na sua esmagadora maioria, por homens.

Muito foi feito, muito há a fazer. Mas como é que chegamos a este dia?

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É preciso recuar a 26 de fevereiro de 1909, e à cidade de  Nova Iorque , para encontrarmos o momento zero do que viria a ser o Dia Internacional da Mulher.
Foi nesse dia que teve lugar uma grande manifestação de mulheres, consta que cerca de 15 mil, onde era reivindicado o direito ao voto feminino e melhores condições de trabalho, uma vez que nos alvores do século XX, as mulheres trabalhavam em jornadas que podiam chegar às 16 horas, seis dias por semana. E muitas vezes estendia-se até ao domingo, com reflexos naturais na vida familiar.

Este movimento contestatário já ia também fazendo o seu caminho na Europa, designadamente nas fábricas dos países mais industrializados, e foi durante a Conferência de Mulheres da Internacional Socialistas, realizada em Copenhageem 1910, que o Dia Internacional da Mulher começou a ganhar forma.

Clara Zetkin, figura histórica do feminismo e uma das fundadoras e dirigentes do Socorro Vermelho Internacional, sugeriu que o dia da mulher fosse assinalado todos os anos. Contudo, ainda não foi ali que se fixou uma data.

Foi precisamente a 8 de março de 1917 que na Russia as mulheres saíram à rua uma vez mais, em protesto contra a carestia, o desemprego e as cada vez mais precárias condições de vida no país dos czares. Os operários, homens, juntaram-se à luta, o que acabaria por precipitar a revolução bolchevique de 1917.

Países como a Arábia Saudita, onde as mulheres têm os movimentos controlados, ou nações africanas onde a mutilação genital feminina é uma prática corrente, e muitas vezes socialmente aceite, fazem-nos pensar que há muito estrada para andar antes de a comemoração do Dia Internacional da Mulher ser completa e definitiva.

E já que estamos em Portugal, numa sociedade supostamente igualitária, não esqueçamos neste dia, por exemplo, as mulheres que todos os anos são vítimas de violência doméstica, uma praga que tarda em erradicar-se. Ou o ainda diminuto número de mulheres em cargos de chefia.

Por isso, se hoje a brindarem com flores ou chocolates, recuse com delicadeza. Ou então grite bem alto que a luta das mulheres não é os 100 metros barreiras. É uma maratona e, infelizmente, com um final ainda longínquo.

(Retirado de o Ekonomista,,,,,)