M. Martins, 13.09.21
Só por duas vezes votei convictamente num candidato vencedor. Nas eleições presidenciais de 1996, quando venceu o futuro Presidente da República Cavaco Silva, e para a Câmara Municipal de Lisboa, em 1989, na primeira vez que tive direito ao voto, quando venceu o futuro Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. As duas vezes foram no mesmo homem: Jorge Sampaio. Também foi por ele que participei na minha única campanha eleitoral vencedora, a que o elegeu como Presidente da República. Fi-lo por total confiança no caráter de um homem bom, sério e com os valores no lugar.
Não concordei com todas as decisões de Jorge Sampaio. Como autarca, deixou grande parte do planeamento feito para quem lhe quisesse dar continuidade. Mas nem sempre teve o arrojo de vencer os bloqueios que permitiriam levar à prática a cidade que pensou – e, desde o 25 de Abril, foi o único presidente da CML que realmente a pensou.
Como Presidente, fez tudo para evitar o envolvimento de Portugal na guerra do Iraque, depois de Durão Barroso ter abusivamente colado o seu nome no apoio português a essa aventura. Mas deu posse a um arremedo de governo de Santana Lopes, permitindo que nesse adiamento de umas eleições inevitáveis as forças mais obscuras derrubassem Ferro Rodrigues da forma mais ignóbil que a nossa democracia já conheceu e abrindo caminho para José Sócrates. Acertou e errou, como acontece a quem faz política para além das proclamações de intenções.
Sei do seu passado, nas lutas estudantis contra a ditadura, de que foi um dirigente destacado como secretário-geral da Reunião Inter-Associações Académicas (RIA). Sei o que era o seu presente, dirigindo estruturas que fomentaram o diálogo entre culturas, como a plataforma Global para os Estudantes Sírios (de que conheço beneficiários concretos) e o Alto Representante para a Aliança das Civilizações, uma instituição da ONU que teve o diálogo entre o Ocidente e o mundo islâmico como alternativa ao choque de civilizações que os neoconservadores impuseram como olhar sobre o mundo. Com acertos e erros, que só não comete quem paira sobre a vida cívica, esteve sempre do lado certo da luta e do diálogo.
Diz-se muitas vezes que António Costa foi o primeiro a juntar a esquerda. Não lhe quero tirar qualquer mérito da “geringonça” e muito menos fazer comparações deselegantes e deslocadas para esta hora. Mas isso aconteceu numa coligação pré-eleitoral, em que Sampaio juntou, no boletim de voto, PS e PCP, coisa impensável até então. Já conseguira o apoio de toda a esquerda na sua candidatura à Presidência. Isso não foi possível apenas como gesto tático inevitável ou por mera reação a uma ofensiva política. Foi possível porque era fácil apoiá-lo. Isso também correspondia a algumas das suas fragilidades, que o levavam a não ser polarizador. Mas, em quase tudo, a enormíssimas qualidades. Muito poucos podem apresentar, em simultâneo, o seu currículo democrático e ético. Como escreveu Fernanda Mestrinho, “tão sério como Eanes, antifascista como Soares”.
Jorge Sampaio já não era deste tempo, em que fazer política é lidar com um ódio viral que envenena todos os debates. Onde já nem a doença e a morte calam os alarves. Ele, o Presidente dos afetos, não se daria bem com esta lama que inunda a democracia. Era um homem bom. E a coisa não está fácil para eles. Foi, até ao último dos seus dias e sem desprimor para os que o antecederam e sucederam, o meu Presidente.