M. Martins, 14.03.22
A propósito da embrulhada criada com os votos vindos da Europa e de fora dela: descobri este artigo do jornalista Rui da Rocha Ferreira.
“A digitalização de todos os aspetos da nossa vida é inevitável, mais vale prepararmo-nos para isto em condições do que andar sempre a remediar problemas, ano após ano”
Quem me conhece sabe que gosto de usar exemplos exagerados para colocar algumas ideias em perspetiva e tentar despertar um sentimento de culpa e vergonha alheia pelo caminho. Cá vai disto: já enviámos sondas para o espaço interestelar, temos protótipos funcionais de computadores quânticos, os sistemas de Inteligência Artificial já são capazes de verdadeiras revoluções ao conseguirem determinar estruturas de proteínas, mas ter voto eletrónico? Ui, isso é um desafio que não somos capazes de resolver!
E cá estamos nós, em 2021, na pior fase da pandemia – pelo menos para Portugal –, com umas eleições presidenciais à porta, as mais debatidas e faladas que me lembro por haver novas forças políticas no jogo do poder, e os níveis de abstenção podem ser os maiores de sempre, podendo mesmo aproximar-se dos 70%, segundo o jornal Expresso.
Esta é a minha opinião: o tema do voto eletrónico em eleições presidenciais, legislativas, autárquicas ou europeias não está resolvido, porque por algum motivo não há vontade em resolvê-lo. No final de quase todas as eleições, vemos os responsáveis políticos a lamentarem-se como a abstenção dos portugueses foi maior do que o desejado e como é imperativo refletir-se sobre o tema. Pois bem, nunca nenhum deles o fez verdadeiramente.
Se houve aspeto que a primeira vaga da pandemia nos ensinou, é que quando é preciso arregaçar as mangas, criam-se soluções para resolver os problemas das pessoas, nem que isso signifique criar um ventilador com peças feitas em impressoras 3D e com balões de festa! Foi possível fazer – e, mais importante, testar, testar, testar – uma vacina para a doença em dez meses. Obrigado ciência! Pessoalmente, não acredito que não fosse possível desenvolver um sistema de voto eletrónico seguro em igual período de tempo. Também gostava de poder agradecer à tecnologia.
Só alguém muito ingénuo é que podia acreditar que chegaríamos a janeiro sem uma nova vaga da pandemia. Maior ou menor, ela existiria sempre, como consequência dos contactos feitos nas épocas de Natal e Ano Novo. Por isso pergunto, porque não nos preparámos para esta eventualidade de termos milhares de infetados, isolados ou simplesmente com medo de irem votar? Porque não convocámos as melhores tecnológicas, os melhores especialistas em cibersegurança, constitucionalistas e todos os outros que fossem necessários, para criar um sistema de voto eletrónico em tempo recorde, funcional e seguro? Porque não fizemos disto uma prioridade nacional? Todos temos o direito ao voto e o Estado tem a obrigação de nos dar condições para exercermos este direito. Se não o fizer, estará a falhar redondamente naquela que é a sua missão e no seu contrato social estabelecido com os cidadãos.
Além disso, nem sequer teríamos de começar do zero. Nas eleições europeias de 2019, foi feito um teste piloto, em Évora, de voto eletrónico (presencial, é certo), experiência que recebeu uma nota positiva da secretaria geral do Ministério da Administração Interna. Só era preciso começar a construir a partir daqui. Na Estónia, em 2019, nas legislativas locais, dos 561.131 estónios que votaram, 247.232 fizeram-no através do sistema de votação online – ou seja, 44% usaram o voto eletrónico. Pois mande-se alguém para a Estónia para aprender como é que se faz!
Para mim, era preferível termos feito um esforço hercúleo para desenvolvermos um sistema de voto eletrónico funcional, mas que depois, por opção, até podíamos nem usar por a situação permitir o voto tradicional, do que estarmos com os dedos a fazer figas na expectativa de que a pandemia estivesse ‘sugadita’ e não nos chateasse.
Está mais do que na hora de usarmos o dinheiro dos contribuintes para aquilo que é verdadeiramente importante e que salvaguarde o seu interesse. Está na altura de deixarmos de achar normal que o Portal das Finanças vá abaixo quando é preciso meter as faturas ou que o Portal das Matrículas deixe os pais à beira de um ataque de nervos, como aconteceu no ano passado. Está na altura de pensarmos na tecnologia como uma verdadeira resposta e alternativa para determinadas ações ‘analógicas’, em vez de olharmos apenas para elas como um meio termo, como ‘só meia dúzia é que vão usar isto’ ou ‘como é óbvio, não devem submeter as faturas todas no último dia do prazo’. Porquê? O prazo não serve para isso mesmo, para me permitir fazê-lo até àquele ponto? Um golo nos descontos no futebol não é tão válido como um golo nos primeiros segundos da partida? A digitalização de todos os aspetos da nossa vida é inevitável, mais vale prepararmo-nos para isto em condições do que andar sempre a remediar problemas, ano após ano.
O voto eletrónico podia até nem ser para todos os portugueses, mas sê-lo apenas, por exemplo, para quem está mesmo ‘impedido’ de ir votar. Se conseguíssemos reduzir em 5, 10 ou 15% o número de pessoas que se deslocam às urnas – e haverá sempre quem o irá fazer, nem que um dia se invente o voto telepático –, já estávamos a dar uma grande ajuda em termos de mitigação de riscos de saúde pública. E mais importante, estaríamos a dar um passo de gigante na salvaguarda de um direito fundamental dos cidadãos e, no global, da democracia.
Tirando o descrédito nos políticos, nunca se perguntaram por que razão a abstenção é tão elevada? Nunca se perguntaram se é possível que a abstenção diminua significativamente se tornarmos muito mais conveniente o método de voto?
Há um ditado que diz que para aprender é preciso cair. Pois bem, que este tenha sido o tombo final que todos precisavam, especialmente os que têm responsabilidade política, para que se concretize algo que já devia ser uma realidade.