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Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

Desabafos,,

Da vida não quero muito. Quero apenas saber que tentei tudo o que quis, tive tudo o que pude, amei tudo o que valia a pena e perdi apenas o que, no fundo, nunca foi meu.

É destas pessoas isentas, ainda que de outra cor clubista, é destas que eu gosto, são elas que gosto de ouvir, é delas que gosto de dispensar algum esforço da minha débil visão para ler coisas com sentido, muito sentido!!

M. Martins, 28.09.22

POSTAL DO DIA 

 

Taremi está a arriscar a vida – não me falem de penaltis 

 

1.

Por estes dias, um jogador iraniano do FC. Porto tem ocupado as primeiras páginas do jornalismo.  

 

Horas de debates televisivos a discutir sobre se Taremi é ou não um ladrão de penalties. 

 

O presidente da Câmara do Porto chamou idiota a um repórter por este ter ousado fazer uma pergunta ao jogador. 

 

Sérgio Conceição recusou-se a prestar declarações em solidariedade com a perseguição mediática a Taremi. 

 

Nas redes sociais marcaram-se duelos e sessões de cabeçada ao nascer do Sol. Há alucinados à beirinha de um colapso nervoso, de um enfarte ou de um AVC por causa de Taremi – uns porque mergulha e engana os árbitros, outros por estar a ser perseguido por malandros que desejam o mal do Porto.  

 

2.

Para muitos, o futebol é uma questão de vida ou de morte. 

 

Mas para Taremi há coisas um bocadinho mais importantes. 

 

O respeito pela vida humana. 

A coragem de respeitar a sua consciência. 

O valor da solidariedade. 

 

Sim, Taremi tornou-se uma bandeira no protesto contra a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, espancada às mãos da tenebrosa “polícia da moralidade”. 

 

A rapariga curda cometera um crime terrível: tinha o seu véu islâmico malposto em plena rua. Foi por isso levada para um qualquer lugar e ficou em coma durante três dias. 

 

Amini resistiu três dias. 

 

E após a sua morte as ruas do Irão encheram-se de mulheres em protesto contra um Estado demencial, contra o modo indigno como são tratadas. 

 

Nos protestos morreram mais de trinta pessoas. O regime iraniano, o regime dos “Ayatollah’s”, reprimiu as manifestações. 

 

E tem ameaçado de prisão. 

Tem ameaçado de tortura. 

Tem ameaçado de morte quem se revolta. 

 

4.

Taremi, estrela maior do futebol iraniano, figura amada pelo povo persa, podia estar calado e não fazer comentários, mas não. 

 

Sabendo os riscos que pode correr, sabendo das ameaças à sua própria família, Taremi quis ainda assim prestar solidariedade para com as mulheres do Irão e para com a morte da jovem Amini. 

 

Na sua página de Instagram trocou a sua fotografia por uma imagem do território iraniano coberto de negro. 

 

Influenciou com sucesso outros jogadores a seguirem-lhe o exemplo.  

E já antes, no jogo com o Estoril, usara um punho negro em sinal de luto. 

 

5.

Alguns que me ouvem ou leem sabem que sou do Benfica. 

 

Um bocadinho doente, confesso. 

Entusiasmado com esta época, admito. 

 

Mas não me venham falar dos mergulhos de Taremi - quero lá saber se se faz ao penalty ou não. 

 

O que sei, o que tenho a certeza, é que Taremi é uma pessoa enorme, um homem com uma coragem e uma retidão de princípios que o distingue da maioria. 

 

É muito fácil abrirmos a boca e dizermos umas coisas. 

O difícil é arriscar a vida em nome de uma consciência de bem, de uma espinha direita. 

 

Arriscar a vida. 

Não ceder às ameaças. 

Poder deixar de jogar na seleção, poder colocar em causa a sua família mais próxima, poder ser preso. 

 

6.

Taremi sabe que tudo isso passou a ser uma possibilidade.  

 

Porque ele não é um anónimo que se revolta numa rua de Teerão. Ele é uma estrela e um dos mais amados iranianos. 

 

O que ele diz tem consequências. 

 

É por isso que ao defender a jovem Amini, ao atacar a repressão do governo do seu país e a cegueira moral dos “Ayatollah’s”, Taremi sabe que está a arriscar no limite a sua própria vida. 

 

Não me falem de piscinas ou de penaltis.

Ele está para lá disso – Taremi é um homem exemplar, uma pessoa inteira e admirável.

 

LO

Obrigado  Luis Osório 

Da Viuvez

M. Martins, 09.09.22

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Como a discrição era o seu forte , o meu marido faleceu sem aborrecer  ninguém . Não  foi necessário chamar o médico porque não houve doença: a meio do jantar suspendeu serenamente os talheres por cima dos filetes com arroz de grelos , olhou para mim com a  ternura do costume,  pegou-me na mão , e disse

----Alice

o que me surpreendeu um bocado  por não  me chamar Felicidade , sorriu-me , deixou de sorrir,

aterrou de queixo no cestinho do pão e chegou já cadáver aos papos secos da véspera dado que por ser dia de limpezas não tive tempo de ir às compras . Não houve despesas em doutores nem em medicamentos , os filetes voltaram ao congelador e quanto aos papos secos torrei-os , pus-lhes um bocadinho de compota de framboesa e comi-os com chá na noite do velório. Com a fraqueza com que eu estava , souberam-me lindamente.  

Não foi necessário chamar o médico, o agente funerário não suou muito a tirar o pijama do finado e a vestir-lhe o fato castanho visto o meu marido , que nunca foi um homem rígido , dobrar os braços e as pernas com uma submissão exemplar e às quatro da tarde já estava na câmara ardente B-2 da Igreja dos Anjos , engraxadinho e penteado , todo composto , com uma cruz  nos dedos , comigo e com a minha irmã  Alice em cadeiras de assento de veludo encarnado a pormos a conversa em dia que como isto anda , cheias de trabalho e de complicações , nem temos tempo para telefonar uma à  outra e só nos vemos quando o rei faz anos .Ela achou-me com boas cores , eu gabei-lhe o lenço de seda do pescoço , o meu marido a assistir calado 

(sempre assistiu calado quando nós falávamos como se não estivesse ali )

e pela primeira vez desde que o conheço não se pôs a espiar as pernas da Alice a pensar que eu não  o via nem tentou passar-lhe a mãozinha  na nádega quando me apanhou de costas a cumprimentar a viúva da câmara  B-3

cujo defunto só aceitou o caixão depois de meses e meses de despesas enormes numa clínica particular em soros , radiografias e algálias , uma dessas pessoas esbanjadoras incapazes de  entenderem que a vida está pela hora da morte e que não se ralam de deixar quem cá  fica a tinir   sem dinheiro para uma excursão  a Espanha , onde se diz que há uns rapazes generosos e novos   com o sentido da solidariedade humana , que consolam a gente por meia dúzia de pesetas em discotecas e outros lugares de culto que por acaso não se me dava conhecer.

 Tirando a minha irmã e eu não veio mais ninguém: não possuo cunhados nem primos , o meu marido nunca foi sociável e limitava-se a sair duas horas à  tarde , com um saco de milho no bolso , para um passeio solitário na Baixa e uma visita aos pombos do Camões , de modo que a minha irmã e eu   esgotada a conversa , ficámos caladas em frente  da urna até que me lembrei da agonia por cima dos filetes , informei a minha irmã 

------  Sabes que ele disse Alice ao aterrar nos papos secos ?

ela corou como uma ameixa agarrada ao lenço de seda do pescoço , um lenço de ramagens  óptimo que tomara eu um igual

----- Alice 

eu

-----Alice imagina vá-se lá saber porquê 

a minha irmã de pé com uma expressão esquisita 

---- Aguenta um minuto que  vou lá fora apanhar ar

e isto foi há três meses e nunca mais a vi ao natural mas dei com ela ontem , ao abrir por acaso a gaveta da secretaria  do meu marido à  procura da tesoura das unhas quando encontrei um envelope  de fotografias deles dois abraçados , e o meu marido de cartuxo de milho para os pombos na mão e a minha irmã de lenço de seda do pescoço , a sorrirem-se diante da estátua do Camões .Talvez fossem amigos . Eram de certeza só amigos e as cartas que acompanhavam as fotografias , uma delas a agradecer o lenço e a prometer Hei-de vestir-me só com ele quando vieres cá  a casa meu leão adorado e outra que acabava A tua Alice que te morde não significavam mais do que uma brincadeira de cunhados apesar das das pernas dela e da mãozinha na nádega . (A minha irmã é  uma  rapariga expansiva)

( aos vinte e seis anos toda a gente é  expansiva)

e sem maldade nenhuma e o meu marido um homem como deve ser .Talvez por isso eu vá sentir-me de certeza um bocadinho culpada quando no verão for a Espanha de autocarro numa excursão de senhoras sozinhas e entrar numa discoteca com um homem  simpático a pedir-me ao ouvido , entre repenicos de beijos ,

que lhe empreste pesetas para pagar a conta por , que maçada , ter esquecido a carteira em casa dos pais .

 

António Lobo Antunes

Minha memória

M. Martins, 08.09.22

Carta-a-minha-memoria_XLVI.jpg

Minha memória,

Amanhã vou ter quinze anos outra vez, vou acordar com o sol alto e nenhuma vontade de trabalhar. Esticar o meu corpo leve e despreocupado e sair a correr. O dia vai voar e eu com ele, por dentro das gargalhadas dos amigos que deixei lá longe numa curva qualquer da vida e que por causa deste amanhã, com quinze anos outra vez, voltarei a encontrar. Vou revê-los um a ou nos seus rostos imberbes, nas suas promessas por cumprir, nos seus sonhos tão reais como o foram nesse tempo. Vou revê-los e abraça-los nesse abraço longo dos quinze anos que é para sempre e, ter a absoluta certeza de que nunca os irei perder. De que nunca mais os irei perder. Com quinze anos todos os planos são para sempre e para já. O tempo cavalga numa sinfonia arrebatada. As horas sucedem-se, é certo, mas ninguém repara nelas. Não há sinais de abrandamento nem fios de cabelo que perdem a cor. Aos quinze anos a vida agita-se em passo de corrida, ninguém se lembra de olhar para trás e daquilo que se passou. Não interessa sequer, o que passou. Apenas importa o que há por viver. E o que há por viver, aos quinze anos, é quase sempre o tempo todo da eternidade. Da memória, tem-se apenas uma leve e ténue lembrança. Os sonhos são curtos e os sonos demorados e quase sempre despovoados de fantasmas. Amanhã, depois de acordar vou ficar por aí a nadar no mar quente dos meus anseios. Descobrir que o meu corpo afinal passa facilmente por cima do horizonte. As pernas leves, tão leves e os braços abertos no tamanho de quase tudo. Lembra-me minha memória, porque amanhã, eu vou ter outra vez quinze anos. Os meus braços podem perfeitamente transformar-se em asas de borboleta e o riso, esse riso de que nunca mais me lembrei…Vai explodir célere nas esquinas da minha cidade. Não me lembro de correr outra vez pela minha cidade como o fiz aos quinze anos. Ora abraçando as esquinas , já sem fôlego, ora demorando o passo nos caminhos. Cada prédio estava povoado de rostos, tantos rostros. Amanhã, vou voltar a encontrar esses rostos exactamente como eles eram. O dia vai povoar-se de cabelos longos e correrias. De alguns poemas, que lerei para depois recordar. Tudo o que eu viver amanhã, ficará comigo. Bastar-me-á depois o tempo todo que me resta para poder disfrutar de um facto inolvidável e irrepetível na minha vida, como é o poder de transformar o meu presente e o meu futuro desta forma, porque amanhã, decidi eu hoje, eu vou ter outra vez 15 anos. É possível sim, voltar a ter quinze anos. Basta para isso abrir as mãos, sem medo e deixar que lhes pouse, muito ao de leve, um brevíssimo instante de eternidade.