O que se Deixa para Trás
Texto “roubado”ao Júlio Machado Vaz
O que se Deixa para Trás
Michaux viajava para se tornar mais pobre, para ficar com menos, ao contrário do que imaginamos quando saímos de casa com as malas feitas. Cremos frequentemente que nos vamos enriquecer.
Se a experiência costuma encher, caminhar é libertador, é deixar um mundo para trás. Há um empobrecimento, deixa de haver propriedade além do pouco que levamos connosco.
Há alguma semelhança com a morte, já que deixamos um mundo material para trás. Dizia-se, entre os anacoretas do deserto, que não há nada na morte que a solidão não nos tenha já sussurrado ao ouvido. Poderíamos dizer o mesmo da viagem. Não só para nós, como para quem fica. Ao deixar de ter contacto com as pessoas que o rodeavam, o viajante entra no mundo dos mortos, no Hades. As pessoas deixam de o ver, da mesma maneira que não vêem os mortos. A morte é uma curva na estrada.
Para o viajante, a viagem pode significar deixar tudo para trás, toda a sua vida, os amigos, os familiares, as suas possessões, e partir apenas com aquilo que lhe é absolutamente essencial, uma espécie de alma que só por teimosia ainda tem corpo, e ouvir assim sussurrar ao ouvido, as coisas que importam realmente: os poucos objectos que levamos e a falta que fará, na nossa vida futura, quem deixamos para trás.
Afonso Cruz, in 'Jalan Jalan'